Alma do Deserto | CRÍTICA – um documentário belo, mas chato

Melo

Alma do Deserto | CRÍTICA – um documentário belo, mas chato

Alma do Deserto, dirigido por Mónica Taboada-Tapia, é um daqueles documentários que têm tudo para emocionar, mas acabam ficando mais no “quase” do que no “uau”. A história é incrível no papel: Georgina, uma idosa trans da etnia indígena Wayúu, atravessa a pé a península de Guajira para buscar algo que ela esperou quase meio século — um documento que finalmente reconheça sua identidade e permita que ela vote. É uma premissa que mistura luta pessoal, denúncia social e uma paisagem que parece gritar junto com a protagonista. Só que, na prática, o filme deixa muito a desejar.

Pra começar, vamos ser diretos: o filme é chato. Não porque seja contemplativo — isso é comum em documentários, e muitas vezes funciona. Mas aqui, a lentidão parece mais desorientada do que intencional. Enquanto eu tentava manter os olhos abertos na sessão, Georgina lutava pela própria existência. A diferença é que ela tinha um objetivo claro, enquanto o filme parece não saber muito bem para onde está indo.

Isso não quer dizer que o documentário seja todo ruim. A fotografia é belíssima, e as paisagens áridas de Guajira são um espetáculo à parte. Cada cena parece uma pintura — o tipo de coisa que faz você pensar “nossa, que bonito” antes de lembrar que tá meio entediado. Mas aí é que tá: essas imagens lindas acabam tomando tanto espaço que a Georgina, que deveria ser o coração do filme, fica quase como uma figurante na própria história. Ela aparece caminhando, sobrevivendo, mas não a conhecemos de verdade. Quem é Georgina além dessa jornada física? O que ela sente, o que ela pensa, como ela chegou até aqui? O filme não responde.

ALMA DEL DESIERTO - Giornate degli Autori

Outro ponto que incomoda é como o documentário tenta abraçar um monte de temas ao mesmo tempo e, no fim, não faz jus a nenhum deles. Tem a luta pessoal de Georgina como mulher trans. Tem a denúncia sobre a exclusão histórica dos povos indígenas pela branquitude e a burocracia ocidental. Tem até umas críticas sutis ao capitalismo, com cenas de roupas de marcas famosas contrastando com a pobreza local. Tudo isso é relevante, mas fica tão jogado que nada ganha a profundidade necessária.

E aí tem o problema da exploração da miséria, que é um baita tropeço. O filme usa e abusa de imagens de seca, solidão e carcaças, como se quisesse gritar “olha como a vida aqui é dura!”. Só que, em vez de criar empatia, acaba parecendo um olhar de fora, quase voyeurista, que não faz jus à complexidade de Georgina nem ao que ela representa para sua comunidade. Cadê o acolhimento? Cadê as histórias sobre como ela é amada e aceita por alguns dos seus pares? Fica tudo tão focado no sofrimento que a experiência de assistir acaba sendo cansativa — e não no bom sentido.

E, pra piorar, em um momento particularmente questionável, o documentário decide reconstruir eventos traumáticos da vida de Georgina para dar um impacto narrativo. Isso acaba soando desrespeitoso e insensível, como se o filme estivesse mais preocupado em chocar do que em honrar a história de sua protagonista. Georgina não tem quase nenhum espaço para falar por si mesma, para compartilhar sua própria visão, e isso é uma falha enorme para um filme que deveria ser sobre ela.

ALMA DEL DESIERTO - Giornate degli Autori

No final das contas, Alma do Deserto é uma baita oportunidade desperdiçada. Georgina é uma figura fascinante, e sua história tinha tudo para ser contada de um jeito mais humano, mais empático e mais emocionante. Em vez disso, o filme escolhe ser contemplativo demais, espalhado demais e, pra ser bem honesto, chato demais. As denúncias que ele tenta fazer são importantes, mas ficam diluídas em uma narrativa que não sabe muito bem o que priorizar. E, quando a sessão acaba, você fica com aquela sensação de que queria abraçar Georgina e pedir desculpas, porque ela merecia algo muito melhor do que isso.

Se você for assistir, vá preparado: a paisagem pode ser linda, mas a travessia é longa e árida — tanto para Georgina quanto para o espectador. Se você gosta de visuais bonitos e tem paciência pra um ritmo que parece arrastar os pés na areia junto com a protagonista, talvez valha a pena. Mas se você busca uma experiência realmente transformadora ou uma conexão mais forte com a história, pode sair decepcionado. Alma do Deserto tinha tudo pra ser uma joia, mas acabou como uma travessia longa e árida — no pior sentido possível. Ao invés de ser uma celebração de sua luta e resiliência, o documentário acaba sendo um produto que, ironicamente, reduz sua protagonista a um símbolo distante, sem alma.

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