O Coringa já teve sua origem contada algumas vezes, tanto no cinema quanto nos quadrinhos, mas poucas vezes de forma tão profunda como neste filme, protagonizado por Joaquin Phoenix.
Isso é interessante, já que o filme dirigido por Todd Phillips se passa em um universo que realmente não parece ser baseado em HQs. O personagem de Phoenix vive em uma Gotham City infestada de ratos, suja, degradada e que ainda não tem um Batman para frear seus excessos. Mas a loucura está lá, muito bem representada.
Tudo isso colabora para uma versão histórica do vilão. O filme, certamente, deve agradar aos fãs do icônico Palhaço do Crime.
Na história, Arthur Fleck vive em uma cidade insana, com uma mãe que também não tem suas faculdades mentais ilesas. O produto disso não poderia ser outro: o palhaço, alvo de piadas e surras de gangues na rua, parece realmente acreditar que veio para trazer riso e diversão ao mundo, como sua mãe lhe diz.
Contudo, seu riso descontrolado, fruto de um distúrbio neurológico, não traz diversão. Muito pelo contrário: a risada se manifesta em momentos de tensão, angústia e tristeza – e é ouvida com frequência durante todo o filme.
O magnata Thomas Wayne, futuro candidato a prefeito de Gotham, acaba se tornando o alvo da insanidade de Fleck, que se vê cada vez mais segregado por sua condição e busca nele o que nunca teve na vida: compreensão.
No entanto, basta um dia ruim para que o mais são dos homens enlouqueça completamente – e, neste caso, leve uma cidade inteira à insanidade. O Coringa vai “nascendo” ao longo do filme, mas após o destino de Wayne, dá para ficar em dúvida se o vilão é um homem ou uma ideia.
Nos aspectos técnicos, o filme acerta em colocar o berço do Coringa como sendo uma Gotham sórdida, desorganizada, violenta e implacável com seus habitantes menos favorecidos. A fotografia é escura, densa e ajuda a destacar o mundo cinza de Arthur Fleck, que certamente deve ficar entre os grandes trabalhos de Joaquin Phoenix.
A transformação do personagem de um adulto quase inocente, passando pela catarse dos acontecimentos e terminando no vilão cínico e provocador, é trabalhada pelo ator de forma muito intensa.
Os personagens de Robert De Niro e Brett Cullen aparecem pouco, mas são de extrema importância e enchem a tela – principalmente o primeiro, em seus diálogos com Arthur Fleck já completamente transformado, pouco antes do ápice do longa.
A única coadjuvante que parece ser mal aproveitada é a personagem de Zazzie Beetz. Ela tem sua importância na transformação de Fleck, mas a ausência de um final para sua personagem desvaloriza o trabalho da atriz que brilhou em Deadpool 2.
As polêmicas perguntas que chegaram a fazer Joaquin Phoenix se irritar durante a divulgação do filme acabam não se justificando tanto. Existe violência e ela é explícita, mas não é nada muito além do que Quentin Tarantino já fez ainda nos anos 1990.
O filme acaba batendo em uma tecla importante e deve chamar a atenção para os direitos de pessoas com distúrbios psicológicos e psiquiátricos. Por outro lado, quem quiser enxergar algum tipo de justificativa para o comportamento do Coringa, vai encontrá-lo nessas questões.
De qualquer forma, não há apologia a violência em Coringa. Fica sempre implícito que Arthur Fleck é um homem perturbado, cujas ações não são corretas sob nenhuma circunstância.
Coringa, que é um ótimo filme, não deve incentivar ninguém a cometer atos violentos. Todavia, é um lembrete de que o mundo nem sempre é justo com todas as pessoas. Diante de certas circunstâncias, qualquer um pode ser o vilão, e que isso não tem a menor graça.
Estreia de Coringa: 3 de outubro de 2019.
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